Acibiibi, chefes e outras antepassadas femininas: um ensaio fotográfico sobre o relato de histórias orais no norte de Moçambique

Traduzido por João Figueiredo

Acibiibi, Chefes e Outras Antepassadas Femininas’ é uma série fotográfica que documenta um projeto de história oral ainda em curso, sobre as mudanças históricas que condicionam o poder político e espiritual das mulheres do povo Yaawo do Niassa, no norte de Moçambique.

Recorrendo a fotogramas de vídeos de entrevistas e a retratos das principais narradoras e narradores, esta série explora as formas como o tempo quotidiano das nossas vidas e o tempo mais profundo (o tempo dos nossos antepassados) se entrelaçam e interagem nos encontros em que histórias orais são contadas.

Os Yaawo têm uma longa história de chefes femininas (mweenye vaakoongwe) e de outras figuras de autoridade política e espiritual (conhecidas primeiro como biibi [pl. acibiibi] e angaanga e, depois, como rainha). Apesar do sistema de chefatura, que é condicionado pelo género, e do próprio formato do poder feminino terem mudado significativamente ao longo do tempo, continuam a existir acibiibi, e algumas comunidades têm mulheres enquanto chefes. 

Hoje, as acibiibi são recordadas não só nas narrativas de história oral das dinastias de chefes Yaawo que emergiram em meados do século XIX, como também em histórias familiares mais pessoais.

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Contando Histórias. Aku-Siwona Sayidi, Selsa Saidi, A-Siyatu Mwaamadi, A-Biibi Bonomadi e Helena Baide (a minha co-entrevistadora) em Ligogolo, 2019.
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Da avó à filha da filha. Aku-Siwona Sayidi recorda-se de ser seu dever, quando era criança, pilar o milho para que a biibi realizasse a cerimónia da mbopeesi (esta era a cerimónia em que uma oferenda de farinha chamada mbopeesi era feita aos espíritos dos antepassados e a Deus, pedindo-lhes proteção para os vivos). A biibi era a sua avó, Ce-Mwaamiini N’suume. A farinha apenas podia ser preparada por meninas que não tivessem ainda ‘entrado no wunyago’ (os ritos de iniciação), pelo que não podia ser a biibi a pilar a farinha. Contudo, quando a biibi ia, juntamente com o régulo Aku-Miwuuti (que era seu irmão), oferecer mbopeesi à árvore n’solo, Aku-Siwona não a podia acompanhar. Os anciãos iam sozinhos e, quando regressavam, como Aku-Siwona recorda, eles apenas diziam que tinham estado na árvore n’solo fazendo a oferenda de mbopeesi. Como Aku-Siwona explica, nessa altura ela não tinha a coragem de fazer quaisquer perguntas. Os seus mais velhos tinham-lhe explicado que esta cerimónia, tal como a wunyago, envolvia conhecimentos que ela ainda não possuía. Anos mais tarde, quando Ce-Mwaamiini morreu, ela deixou a sua cesta de mbopeesi à irmã mais velha de Aku-Siwona, Ce-Dadiya Sayidi. Depois de Ce-Dadiya morrer, a cesta foi herdada por Aku-Siwona que agora está a ensinar à sua neta como continuar a cerimónia quando ela deixar de a poder realizar.
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Nomes que transmitem Histórias. Nas minhas entrevistas, foi muitas vezes mencionada a diferença entre as ‘pequenas’ oferendas de mbopeesi das famílias e a ‘grande’ oferenda de mbopeesi do país (ou território) que era feita pedindo proteção para toda a população. No passado, apenas os grandes chefes territoriais, em conjunto com as suas parceiras femininas, as acibiibi, faziam as oferendas de mbopeesi do país. A principal biibi da chefatura Cipango era Ce-Ngavaane. Ela era a mãe do primeiro Cipango. Depois da sua morte, o seu nome (e posição social de biibi) passou para a sua neta que, como A-Lasiya N’suudi nos disse, era a sua avó materna. Apesar de a cesta de mbopeesi de Ce-Ngavaane não ter sido herdada por A-Lasiya, hoje ela ocupa a posição de biibi da sua família. Ela oferece mbopeesi pedindo proteção para a sua família. Tanto Elisabet como A-Lasiya são as acibiibi das suas respetivas famílias. Elas herdaram os seus nomes e as suas cestas de mbopeesi das suas avós maternas. Elisabet Yimedi, A-Lasiya N’suudi e Helena Baide em Malulu, 2019.
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A árvore n’solo. Pseudolachnostylis maproneufolia. As árvores n’solo adultas são conhecidas por proporcionarem uma sombra magnifica. Estas árvores são consideradas especiais porque as suas folhas apenas caiem à noite. As árvores n’solo também são conhecidas por reunirem os espíritos e é por isso que, antigamente, as pessoas as escolhiam para à sua sombra comunicarem com os seus antepassados e N’nuungu (Deus). Na cerimónia mbopeesi, o pé da árvore começa por ser limpo de ervas daninhas e de folhas secas. Depois, a oferenda de farinha é feita, enquanto os nomes dos antepassados de cada um são chamados, invocando os seus espíritos. Num passado mais remoto, quando os grandes chefes e as grandes acibiibi realizavam a cerimónia pedindo proteção para todas as pessoas do seu território, eles pediam ajuda aos espíritos dos grandes chefes e das acibiibi das suas matrilinhagens que haviam governado antes deles. Mavago, 2019.
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Transições geracionais. As duas filhas de A-Weetu Amissi sabem quase todas as suas histórias, e ela ouve-as com atenção enquanto elas falam a maioria do tempo. Tendo atingido uma idade muito respeitável, A-Weetu já transmitiu a sua cesta de mbopeesi (que recebeu da sua avó) às suas duas netas, que deram início ao processo de aprenderem as suas novas responsabilidades. No passado, como descreve a sua filha mais velha, Helena, cada família fazia a sua cerimónia de mbopeesi, mas hoje é impossível saber o que se passa ao certo nas outras famílias, porque a aldeia é tão grande. A-Weetu e as suas filhas lamentam não saberem nenhum dos nomes das grandes acibiibi da chefatura Kalanje. Como explica Helena: ‘Os antigos chefes respeitavam muito as acibiibi. Contudo, hoje nós não ouvimos mais os seus nomes.’ Apenas o nome do primeiro Ce-Kalanje (recordado como um líder militar forte e um grande chefe territorial) vive até ao presente através dos seus sucessores. Helena Baide, Helena Yinusi, Joana Yinusi, e A-Weetu Amissi em Malulu, 2019.
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Transformações do poder no feminino. Rajabu Chaibo conta a história de como no passado não era um homem que era chefe, mas sim uma mulher. Quando o primeiro Ce-Nam’paanda (chamado nessa altura Ce-Dipiindimule, antes de se tornar o fundador da dinastia Nam’paanda) veio da direção de Mecula, ele chegou com a sua irmã Ce-Ngulupe. Então, a chefe era ela. De acordo com Rajabu, as coisas mudaram e as mulheres não podem mais ser chefes (tem de ser um homem a ser chefe) porque esta mulher não tinha tempo de receber as visitas e as pessoas que vinham expor os seus problemas à chefe. Foi então que foi decidido que não fazia sentido uma mulher ser chefe—porque ela não tinha tempo. Todo o seu tempo era gasto na cozinha, fazendo comida para os visitantes. Rajabu Chaibo, Binamur Buchir, Gabriel Chaibo e Mussa Nam’paanda em Mapuje, 2019. Ce-Nam’paanda V morreu muito recentemente, e os homens com quem eu me encontrei eram os membros do seu conselho.
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Uma história sobre uma bisavó. Fátima Mussa conta a história de Ce-Biiba, a sua bisavó, que foi a primeira chefe da área de N’kalapa. Quando Ce-Biiba chegou ao local, este estava desocupado e uma parte da sua família chegou mesmo a fugir, porque os seus membros pensaram que o sítio não tinha solo fértil que chegue para a agricultura. No entanto, a sua história não acaba assim: enquanto Ce-Biiba se lamentava perguntando-se como é que iria conseguir viver sozinha, ela ouviu os espíritos chamá-la, dizendo-lhe que deveria ir ter com o grande chefe territorial Ce-Mataaka (de acordo com Fátima, este era Machemba; que governou entre 1912 e 1948) para obter mbopeesi. Através desta mbopeesi, conforme os espíritos lhe disseram, ela poderia arranjar pessoas que viessem viver com ela. Então Ce-Biiba foi ter com Ce-Mataaka e trouxe a mbopeesi para N’kalapa, e as pessoas começaram de facto a aparecer. Duas mulheres chefes, Ce-Bulayimu e Ce-Boodi, e um homem chefe, Ce-Wiile, vieram com as suas famílias. Também aqueles que haviam fugido foram chamados de volta. Naquela altura o local era perigoso, cheio de animais como leões, elefantes, búfalos e bois do mato. Quando Ce-Biiba começou a oferecer mbopeesi, todos estes seres desapareceram e o local começou a ser habitado por pessoas. Fátima M’bwaana, Ce-Mangolowe, Fátima Mussa e Helena Baide em N’kalapa, 2019.
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Uma dinastia de mulheres chefes. ‘Ce-Nan’tima era uma mulher; não era um homem’. A Chefe Ce-Nan’tima explica que desde que a primeira Ce-Nan’tima—que chegou da montanha Ciingodi, na área de Quelimane, para ocupar a montanha Ciweegulu, na cadeia montanhosa do Njeese, no Niassa—as chefes Nan’tima tem sido sempre mulheres. Além disso, como ela descreve, as primeiras chefes Nan’tima eram conhecidas por terem mbopeesi poderosa através da qual protegiam o seu povo nas guerras contra os Ngoni e os leões, garantindo também que as chuvas caíam e que as pessoas podiam cultivar as suas colheitas. Maniamba, 2019.
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A sabedoria de uma avó. No final da entrevista perguntei a Ce-Maguuta (o conselheiro e historiador oral dos chefes Mataaka) se ele queria dizer-me algo mais. Ele respondeu: ‘Não, não tenho nada para acrescentar, mas gostaria de falar um pouco sobre o porquê de a mulher ser superior ao homem, hei de tentar contar um pouco o que me disse a minha avó.’ Mavago, 2019.

Agradecimentos: Esta pesquisa nunca teria sido possível sem o apoio de Helena Baide e de Domingos Aly, a quem devo os meus sinceros agradecimentos! A Helena acompanhou-me durante todas as entrevistas e o Domingos transcreveu-as, também me ajudando a traduzir do Ciyaawo para o Português.

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